“Acho que sei lidar com a raiva e o ódio. Perdi a vontade e a força de senti-los; dá muito trabalho e não resulta em nada.”
A frase conquista o leitor de
maneira atemporal, universal — pouco importam as coordenadas históricas e
geográficas para a identificação com uma verdade existencial como essa. Mas
dita, como é, na voz de Nadejda Mandelstam (1899-1980), esposa e companheira
inabalável do poeta Óssip Mandelstam (1891-1938), perseguido, preso, torturado
e morto pelo regime stalinista, sua força e sua verdade arrebatam o leitor de
modo muito mais vital e concreto. Foi Nadejda (“esperança”, em russo), afinal,
quem encarnou o símbolo da mais subtil, da mais abstracta e da mais bela das
resistências ao embrutecimento aniquilador do stalinismo — sussurrando, dias e
noites a fio, por anos, os versos do marido preso e morto, preservando-lhe a
memória, tecendo a história e restituindo verdade ao real. É a essa voz que a
escritora paulistana Noemi Jaffe dá vida em O que Ela Sussurra. É Nadejda quem
narra esse breve e impactante romance, inspirado em uma história verídica. A
arte de Noemi, neste seu oitavo livro, confere a ela contornos irretocáveis
com seu domínio da linguagem e com a explosão da beleza humana em cada memória
preservada, em cada verso evocado, em cada sonho frustrado — mas não traído.
Preso por alguns versos que satirizavam
Stalin (o “montanhês do Kremlin com dedos gordos como vermes”), Mandelstam, um
dos maiores nomes da literatura do século XX, vivia à sombra da ordem do
ditador: “Isolar, mas conservar vivo”. À primeira prisão, que já viera na
esteira de anos de ostracismo, seguiu-se a existência empobrecida e humilhada
pelo interior da União Soviética, forçado a morar apenas em cidades pequenas e
afastadas. Residindo em Voronéj, ali mesmo coube a Nadejda lidar com a
perseguição implacável do regime, com as traições várias, com as lealdades
poucas, com a miséria renovada, com a loucura suicida e a paranoia justa de
Mandelstam. Sobretudo, coube a ela lidar com seus versos. Em cadernos,
transcritos ou copiados, vivia a poesia. Até que o isolamento e a precariedade
não mais bastaram para atender aos caprichos homicidas de Stalin. Proteção não
havia. Preservação era mito. Em 1º de maio de 1938, três homens bateram à porta
do casal e levaram Mandelstam. Dessa segunda prisão, o poeta não regressaria.
“Meu primeiro livro foi Pedra e o
último também vai ser”, disse o poeta ao companheiro de gulag, o campo de
trabalhos forçados, com quem carregava tijolos só para se exercitar, aludindo
ao título de seu livro de estreia. Seriam seus últimos dias antes de morrer e
antes que Nadejda Mandelstam recebesse um bilhete para que fosse a um posto de
correio para apanhar a devolução de um pacote que enviara ao marido:
“Destinatário desaparecido” era o eufemismo para morto. Hoje, a história e seus
brutos fatos são conhecidos. Pode-se ler o incontornável Hope against Hope,
de 1970, em que Nadejda recupera o calvário de Mandelstam (e dela). Hoje, os
versos do poeta são patrimônio de uma humanidade ferida, a que se tem acesso
graças à entrega de Nadejda a essa guerra única. Como disse o poeta irlandês
Seamus Heaney, ao sussurrar e memorizar a obra do marido, que não poderia
correr o risco de ser encontrada em papel, para que os verdugos stalinistas não
a destruíssem, Nadejda tornara-se uma “guerrilheira da imaginação, devota à
causa da poesia”. Hoje, com o nada menos que brilhante O que Ela Sussurra,
Noemi Jaffe opera o milagre vital da literatura — paralisa o tempo, como
Nadejda o paralisara com as palavras sussurradas do marido, e liberta o trágico
casal do rumoroso fluir do tempo. Inscreve-os, assim, sob a forma de uma
esperança — como a do nome Nadejda — em papel firme como pedra.
Publicado em VEJA de 13 de maio de 2020, edição nº
2686
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